terça-feira, 24 de outubro de 2006

Os Silvas.

(Avacalhando "Os Maias" de Eça de Queirós)
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A vivenda que os Silvas vieram habitar em Odivelas, no Outono de 1976, era conhecida na vizinhança da Rua Humberto Delgado e em todo o bairro 25 de Abril, pela casa da porta verde.
Longos anos permanecera desabitada, com teias de aranha pelos cantos, e cobrindo-se de tons ruína.
Em Maio de 1975 um grupo do comité Central do Partido Comunista, visitara-a com ideia de instalar lá a sede local do partido, seduzidos pela possibilidade de a arrendarem por tuta e meia devido ao receio dos proprietários que a casa pudesse ser alvo de uma ocupação selvagem: e o interior do casarão agradara-lhes também, com a sua disposição apalaçada, as alcatifas de cores garridas e o papel de parede a condizer. Mas os camaradas, com os seus hábitos de antigos resistentes na clandestinidade necessitavam os muros e janelas mais altos à prova de assalto e umas traseiras que permitissem a retirada em caso de ataque. Além disso, a renda que pediu o velho Linhaça, procurador dos Silvas, pareceu tão exagerada aos camaradas, que lhe perguntaram, sorrindo, se ainda julgava o país nos tempos das vacas gordas. Linhaça respondeu que também não queriam os ricos pagar a crise. E a casa da porta verde continuou desabitada.
Este inútil pardieiro (como lhe chamava Linhaça Júnior, agora por morte de seu pai administrador dos Silvas) apenas servia desde os fins de 1970 para lá se arrecadarem as louças provenientes da vivenda de família em Alvalade, morada quase histórica, que depois de andar anos em praça, fora então comprada por um emigrante na França. (...)

Iolanda sonhava formar-se em Belas Artes. E como dizia o tio Meireles, houvera sempre naquela menina, realmente, uma vocação para o desenho.
A "vocação" revelara-se bruscamente um dia que ela descobriu no sótão, entre papéis velhos um molho de antigas iluminuras renascentistas ; tinha passado dias a desenhar cenas inspiradas em nus da época . Uma noite mesmo rompera pela sala em triunfo, a mostrar à Tia e amigas, vários explícitos desenhos. D. Lurdes recuou, com um grito, desviando o olhar: e D. Aurora, vermelha também, arrebatou prudentemente Joãozinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mão. Mas o que escandalizou mais as senhoras foi a indulgência de D. Benilde, a Tia de Iolanda.
_Então que tem, então que tem?_ dizia ela sorrindo.
_Que tem, D. Benilde!?_exclamou D. Lurdes_São indecências!
_Não há nada indecente na natureza, minha rica amiga. Indecente é a ignorância... Deixar lá a miúda. Tem curiosidade em saber dessas coisas.
D. Lurdes abanava-se, sufocada. Consentir tais horrores nas mãos da criança!...Iolanda começou a parecer-lhe como uma libertina "que já sabia coisas"; e não consentiu mais que o seu neto Joãozinho brincasse só com ela pelos corredores.
As pessoas sérias, porém, lamentando, sim, que não houvesse mais recato, concordavam que aquilo mostrava na pequena uma grande queda para o desenho
_Se pega _ dizia então com um gesto profético a Prof. Maria do Rosário_ temos dali artista!
E parecia pegar.
Estudante no Liceu, Iolanda deixava os manuais de geografia e matemática, para se ocupar da pintura : numas férias a velha criada Alzira surpreendeu em pleno quarto da menina, Edite, a filha da cozinheira completamente nua servindo de modelo a Iolanda.
Este enorme talento de Iolanda era pouco aprovado pelas fiéis amigas da tia Benilde. As senhoras sobretudo lamentavam que uma rapariga que ia crescendo tão formosa, tão inteligente, viesse a estragar a vida no meio de óleos e aguarelas.
Quando terminou os estudos secundários, Iolanda porém, inesperadamente matriculou-se no Curso de Direito duma Universidade privada de Lisboa.
Iolanda deixava assim, a sua Beira Baixa e a Quinta da Pena do Avento. Rumava a Lisboa.
Para esses longos anos de quieto estudo os tios proporcionaram-lhe uma confortável vivenda em Belém, junto aos Jerónimos. Um amigo de Iolanda (um tal Aníbal Simas) põs-lhe o nome de "Casa da Porta Verde", devido à côr da Porta e ao mesmo tempo uma referência ao famoso filme pornográfico "Por detrás da Porta Verde".
Teria a comparação fundamento ? Que coisas se passariam por detrás da porta de Iolanda?

Simas era já aluno antigo, andava a formar-se devagar, muito pausadamente _ ora reprovado ora perdendo o ano. Sua mãe, rica, viúva e beata, retirada numa quinta ao pé de Coruche , tinha apenas uma noção vaga do que o Anibalzinho fizera, todo esse tempo em Lisboa. O pároco afirmava-lhe que tudo havia de acabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o papá: e esta promessa bastava à boa senhora, que se ocupava sobretudo da sua doença de entranhas e dos confortos desse padre Armindo. Estimava mesmo que o filho estivesse em Lisboa, ou algures longe da quinta, que ele escandalizava com a sua irreligião e as suas facécias heréticas.
Aníbal Simas, com efeito, era considerado não só em Coruche, mas também na Universidade que ele espantava pela audácia e pelos ditos, como o maior ateu, o maior demagogo, que jamais aparecera nas sociedades humanas.
Isto lisongeava-o: por sistema exagerou o seu ódio a toda a ordem social: queria o massacre das classes ricas, o amor livre, a repartição das terras, a anarquia. O esforço da inteligência neste sentido acabou por lhe influenciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pelos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, uma argola na orelha esquerda _ tinha realmente alguma coisa de rebelde e de depravado.(...)

1 Comentários:

Blogger Maria Arvore disse...

Tens mais?... É que fiquei babadinha ao ler-te. :))

Nem sei se gostas da comparação mas fizéste-me lembrar um Sttau Monteiro a escrever sobre o pós-25 de Abril.

24/10/2006, 21:27:00  

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