Quando fiquei barricado numa universidade.
É verdade, apesar de nunca ter feito a 1ª classe, aqui o Bino chegou a andar numa Universidade. E quando digo "andar" é mesmo literalmente, porque eu só lá fui ver aquilo. Estudantes, eram o Barradas e a Fam-Fam.
Corria o ano de 1986 e o Barradas falou-me ao telefone que ia barricar-se numa Universidade. Se eu também queria alinhar ? Bom, se era para haver porrada, que contasse comigo. E parece que pancadaria era coisa certa de acontecer porque se os ocupas eram de um lado da contenda, do outro havia quem os quisesse expulsar de lá para fora à força.
A fim de me dirigir ao local e visto ter dificuldades em orientar-me nas difíceis ruas da capital, recorri aos magníficos serviços de transporte da CP e chegado a Lisboa, apanhei um Táxi directamente para a Rua Vitor Cordon, perto do Chiado.
Eram umas 6h da tarde, pára o táxi mesmo em frente aos portões da Universidade. Do interior da viatura sai um jovem cabeludo, trajando um sensacional blaser de veludo amarelo e umas apertadas calças de ganga azul vivo, a condizer com sapatos brancos (portanto, algo parecido com as cores da bandeira ucraniana).
O táxi deixa rapidamente o local. A súbita chegada do indivíduo desperta a curiosidade dos alunos barricados atrás do portão, bem como daqueles que cercam a Universidade, parados do outro lado da rua, no passeio oposto.
O recém chegado, mochila militar numa das mãos, óculos escuros, dirige-se ao portão, disposto a entrar. Mas como não o conhecessem e com receio que fosse uma cilada, os de dentro recusam-se franquear-lhe o acesso. Ao ver-se sozinho no lado errado da barricada, o desconhecido percebe que se encontra numa situação perigosa. Evita olhar para trás, na direcção do grupo que pretende tomar de assalto a Universidade para acabar com a ocupação.
Recorrendo aos seus poderosos métodos de presuasão, Bino (moi-même, pois quem haveria de ser ?) tenta convencer os barricados que o deixem penetrar.
Uma betinha histérica é a mais renitente, tenta evitar a todo o custo que se abra o portão gritando que se trata duma armadilha.
Bino finge ignorá-la e dialoga com a rapaziada que, por fim, rendidos aos argumentos resolvem meter a chave no cadeado e deixá-lo entrar.
Já a salvo, Bino fuzila com o olhar a betinha histérica duvidando se se tratava de pânico ou da natureza própria de quem só considera humano os outros betinhos da mesma laia.
Subindo ao bar, Bino encontra finalmente Barradas que está nos copos. Cumprimentos efusivos, lá, são-lhe apresentados alguns gajos porreiros, todos dos subúrbios e que desprezam, tanto ou mais que ele, os totós dos betinhos de Lisboa e da linha (a quem chamam pachás).
Nas redondezas há miúdas giras. Bino admira miúdas inteligentes, mas também não as despreza se tiverem um palminho de cara bonito (especialmente quando acompanhado por um bom rabo).
Elas ficam impressionadas pela fleuma verdadeiramente britânica demontrada por Bino e Castelo (um bacano de Pirescoxe) que jogam calmamente xadrez, aparentemente alheios ao ambiente frenético instalado por toda a Universidade, num claro desprezo pelo perigo.
O lider da ocupação aparentemente é um aluno do 4º ano a quem chamam Jotajota. Movimenta-se apressado de um lado para o outro, com um grupo de gajos atrás. Não gosto da pinta dele.
Entretanto, alguém tenta electrificar as grades que cercam o edifício, sem sucesso. Não têm conhecimentos de electricidade o suficiente para saber que, para se electrificar uma cerca, esta tem obrigatoriamente que estar isolada, a fim de não haver passagem imediata de corrente para a terra. Inevitavelmente os dijuntores no quadro eléctrico disparam e as luzes apagam-se. Após algumas tentativas, desistem de tentar electrificar a grade e o portão.
Novamente no bar, que fica no sotão (e onde estão as garinas) o Barradas esforça-se por convencer uma caloira que aquela poderá ser a última noite da vida deles e que talvez o mais acertado seja aproveitarem o melhor possível aquelas últimas horas. A caloira, dá-lhe razão, desiste de ler o manual do Martinez e dedica-se ao alcóol o resto da noite. O Barradas não se dá por vencido e rapidamente descobre outra caloira a quem tenta dar o mesmo golpe.
Pela minha parte, estava no telhado da Universidade a conversar com uma aluna quando finalmente, já a noite ia alta, se dá o ataque dos de fora a fim de nos expulsarem.
Um tipo chamado Banza, ao portão, dá uma extintorada num atacante que fica branco de neve carbónica. Do alto do edifício chovem pedras e garrafas de cerveja que se estilhaçam na calçada da rua. Resolvo aderir à festa mandando também algumas pedras de calçada. Reparo que a alguns metros, um pouco ao lado do grupo que tentava entrar, do outro lado da rua, estão dois homens parados a observar os acontecimentos. Não são jovens e calculo que sejam eles quem comanda as operações. É neles que quero acertar. Agarro numa garrafa de cerveja e faço pontaria a um deles. A garrafa vai direitinha à careca do gajo, mas subitamente roça num fio dos eléctricos da carris e desvia-se o suficiente para se partir em mil pedaços mesmo junto aos pés deles. Os gajos percebem que estão a ser atacados e retiram-se rapidamente. Hoje compreendo que felizmente não lhe acertei na mona, podia tê-lo matado.
Os incidentes continuam por mais um pouco, escutam-se alguns disparos de arma de fogo, um carro da polícia passa e é apedrejado (acto estúpido) e finalmente os atacantes afastam-se sem conseguirem entrar.
Pouco depois chega o corpo de intervenção da PSP, que forma junto à esquina da Vitor Cordon com a António Maria Cardoso, mas virada para o nosso lado.
A polícia parece preparar-se para entrar na Universidade e sendo assim, o caso muda de figura (complica-se).
Ficamos na expectativa. O tempo vai passando. A polícia não avança, mas também não se retira. Entre a malta, corre a ideia de que se eles entrarem a gente sai sem resistir.
As horas passam e nada... não acontece nada. Depois, a Polícia retira-se para as carrinhas ali estacionadas. Mais algumas horas e por fim, vão-se embora.
O dia nasce e percebemos que a ocupação venceu. Deixamos finalmente as instalações da Universidade com a garantia de que tudo se resolverá. Vêm as férias da Páscoa. Depois nasce outra Universidade que se instala na Junqueira.
Irei lá algumas vezes ter com o Barradas e com os amigos dele, o Castelo, o Espadinha, o Óscar e o Nuno de Barcarena. Assistir a provas orais, ver as gajas, coisas desse estilo. Estudar é que não. Na Universidade aprende-se umas merdas, claro, mas perde-se muito tempo.
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