O meu Natal foi assim.
Recordo com saudade os meus tempos de emigrante, quando regressava por breves dias ao nosso querido Portugal, nas férias do Verão e no Natal.
Não existe maior felicidade do que andar pelo estrangeiro e regressar depois à pátria.
Quando regressei de vez e casei com a Mekinha, quase me tornei lisboeta ( eu é que não quis). Isto porque ela é destas bandas e, não querendo mudar-se para a província, vim eu morar para os arredores da capital (mais concretamente para a margem sul, num luxuoso bairro da 34ª melhor cidade portuguesa para se viver).
No entanto, o meu contacto com as avenidas mais largas, os prédios mais altos e os maiores centros comerciais de Portugal não conseguiu apagar em mim o sentimento de saudade pelos tempos da emigração. De tal maneira que quando vou a Estremoz, aproveito para ir até Badajoz de propósito, só para sentir novamente o prazer de regressar a Portugal.
E também a moderna Lisboa, com as suas longas filas de trânsito, não me fez esquecer a linda aldeia beirã onde fui feito. Continuo a ser o homem simples e humilde que um dia partiu mundo fora, apesar dos ambientes sofisticados que tive a sorte de conhecer.
Portanto, como bom português fiel às minhas raízes, quando chega o Natal lá vou eu com o resto da família, rumo ao Norte a caminho da terra, passar a consoada e matar o porco.
Então, no sábado, fomos de viagem (eu, a Meka e as nossas duas filhotas) a ripar de carro, Ribatejo acima, eram umas 8 e meia da noite.
Porto Alto, Samora Correia, Benavente...
Parámos na Chamusca, no restaurante da ponte.
Caraças, deixei o carro mal travado, descaiu e começou a recuar sozinho. Por sorte ainda consegui voltar a entrar e jogar as mãos ao travão de mão. Antes que muito mal acontecesse, parou na rotunda. Meu rico carrinho que se podia ter amachucado todo.
Depois do susto, fomos comer. Folhados de queijo e Ice Tea para elas, sandes de fiambre e Sumol de laranja para mim.
Voltámos à estrada. As pequenitas entretanto, adormeceram. Chegámos finalmente à terra já depois da meia noite.
Foi só o tempo de tirar a bagagem do carro e deitar as meninas. A Meka ficou sentada à lareira a conversar com as mulheres da família e eu pirei-me com os meus irmãos para o largo da Igreja. Todos os anos o pessoal da terra faz uma fogueira com troncos de oliveira tão grossos que ardem vários dias, para a malta não ter frio. Até dá para assar febras e morcela nova nas brasas.
Pronto, isto já se sabe, a malta junta-se. Uns vivem lá, mas também há os que vêm da França ou da Alemanha, outros da Suiça e muitos de Lisboa.
Vamos comendo e bebendo enquanto conversamos. As horas vão passando. Aos poucos a maioria vai-se embora, dormir. Mas há sempre meia dúzia de resistentes que insiste em permanecer junto à fogueira.
Deviam ser umas 2 da manhã, acho que foi o Bino mais velho que desafiou a malta para irmos roubar um bichinho de 4 patas (leia-se coelho).
Onde, a quem e como ? Em poucos minutos de discussão, o Chico, notável especialista nestas coisas de gamar criação, já tinha um plano aparentemente infalível.
Com o Chico ao comando das operações, fomos a pé em grupo compacto. Éramos uns sete, descendo a ladeira, direitos ao casal de baixo (local onde iríamos cometer o roubo).
Chegámos ao largo do jogo, onde costumam fazer um presépio em tamanho natural. No silêncio da noite, ouvimos barulho. Parámos à escuta, era como como se alguém ressonasse. Olhámos melhor e então, descobrimos o Tonho Gato no presépio. Perdido de bêbado, tinha ido deitar-se a dormir entre as palhinhas, no lugar do menino Jesus.
Achámos escandaloso. Que fazer àquele cabrão ? Jogamos-lhe pedrada ou água do bebedouro em cima ? Àgua não, urina sim. O Chico queria ir lá mijar-lhe em cima.
Mas as coisas acabaram por precipitar-se noutro sentido. Tinhamos decidido fazer-lhe uma salga. Agarrámos o gajo e conseguimos tirar-lhe as calças. Mas no derradeiro momento, quando ficou sem cuecas parámos estupefactos como que fulminados por um raio.
Como é sabido, nós beirões, somos uma malta excepcionalmente bem aviada de orgão sexual. Mas o Gato, cuidado. Aquilo dele é um abuso em qualquer parte do mundo, até em Àfrica.
Aproveitando a pequena hesitação, o Gato conseguiu escapar-se de nós. Desatou a correr para casa dele. Refeitos do susto, ainda tentámos agarrá-lo novamente. Porém recuámos rapidamente quando verificámos que os gritos do Tonho Gato tinham chamado a atenção dum grupo de pessoas que estava num velório na capela mortuária, que é mesmo ali junto ao largo e que sairam para a rua ver o que se passava.
Alguns homens que estavam no velório viram tudo, mas consta que conseguiram fechar a porta da casa mortuária a tempo de evitar que as mulheres saissem para a rua e vissem o Tonho Gato correndo nú da cintura para baixo, com o bacamarte exposto.
Virámos costas e então, também nós corremos, mas em sentido inverso do Gato, para não sermos reconhecidos.
Só parámos no Casal de Baixo, mas já não apetecia coelho. Sem mais conversa, dispersámos, cada um para sua casa.
No dia seguinte, cheio de vergonha que me tivessem reconhecido, achei que era meu dever, como penitência, ir ao funeral da ti Maria de Jesus, querida velhinha falecida com 96 anos, de quem eu gostava muito. Que Deus a tenha em descanso.
O meus irmãos também foram ao funeral. Ali, e depois, durante o resto do dia, por toda a aldeia, ouvimos as pessoas fazerem conversa acerca do sucedido na noite anterior. Mas para nosso alívio ninguém avançava nomes. Acima de tudo, o assunto centrava-se em considerações acerca do tamanho avantajado do Tonho Gato (e também, que tinha sido chamado o 112, tendo uma pessoa ido de ambulância para o Hospital de Abrantes).
Felizmente, ninguém parecia interessado em saber quem seriam os malandros que o tinham despido. Assunto sobre o qual, o próprio Gato mantinha absoluto silêncio, recusando-se a fornecer qualquer nome.
À noite, mesmo assim, sentindo a minha consciência ainda algo pesada por termos perturbado o velório, cometi um facto quase inédito: fui também à missa do Galo.
...No entanto, não tive coragem de ir beijar os pés ao menino Jesus.
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